Por Léo Borba, Jornalista.
- Doutor, operar é o único jeito? Então, vamos deixar tudo como está. - Disse ele, com tranquilidade, quase sorrindo. O médico recostou-se na cadeira e olhou para o paciente, sentado à sua frente. Cabelos brancos, ralos e bem penteados, como exige uma ida à cidade. A barba bem feita realçava os vincos dos anos e dos ventos molhados de mar. - Mas este é um procedimento simples – insistiu o médico. - Doutor, na minha idade, nada é simples. Nem mesmo uma gripe, coisa que eu nunca tive! - Mas, se fizer, o senhor volta a enxergar melhor. - Atalhou o médico, com paciência. Depois de um breve silêncio, o paciente também se recosta na cadeira. – Olha doutor, já estou com 93 anos. Já vi muita coisa. Algumas, boas; outras, nem tanto. Vi o sol nascer e se pôr, tantas vezes que não preciso mais ver coisa alguma. – Levantou-se e estendeu a mão ao médico. – Obrigado Doutor. Vamos deixar tudo como está.
Acompanhado do filho, embarcou no carro e voltou pra casa. Mais do que em casa. Santo Antônio de Lisboa era o seu mundo. Para ali fora levado, ainda no colo, deixando o umbigo na antiga praia da Ponta Grossa, onde nascera com o forte por testemunha. Na Vila de Santo Antônio, aprendeu a andar; correu, brincou, casou...
“Não preciso enxergar melhor!” - exclamou baixinho, lembrando da conversa com o oftalmologista. Tinha “de cabeça”, onde estavam os cantos de casa, o trajeto das ruas disformes e os casarios ao longo daquela baía colonizada pelos migrantes dos açores.
Não se importou com o embaçar das vistas. Sabia que era coisa da idade, um barco a contornar a curva do tempo. Uma voluntária renúncia ao direito de ver, por que visto já tinha.
Guiado pela bengala, andava com a mesma altivez de sempre. Dez passos à direita do portão e sabia que estava diante das rosas vermelhas, cujo aroma lhe enchia as narinas. - Onde o senhor estava pai? – Pergunta o filho que o visitava. -Estava ali, meu filho. – respondeu, apontando para a porta. –Estava na beira do mar, vendo os barquinhos balançando com o vento. Ah! E vi o vizinho que estava debruçado na soleira da janela. - Mas como você viu o vizinho na janela, se você não enxerga mais?- Perguntou a esposa. - Minha velha, eu conheço ele há mais de vinte anos ali naquela janela, por que ele não estaria lá, justo hoje?
Gostava de sentar no banco de pedra à sombra de uma árvore, na beira da praia. Ao longe, a ponte Hercílio Luz e uma parte da cidade. Paisagem que não enxergava, mas sabia que estava lá. Recordava dos lanços de tainha na costa da ilha; dos tempos de arribar, na carroceria de um caminhão, com destino à lagoa dos Patos para a pesca do camarão. Há muito, já tinha deixado o rancho, a canoa, as redes e as tarrafas.
Acostumou-se a ver os cardumes nas malhas da lembrança.
Um dia, sentiu na pele o vento nordeste e o dissipar do nevoeiro que cobria os olhos. Viu a baleeira brilhante a balançar. Arregaçou as calças e, descalço, foi em direção à ela. Então, embarcou. Era chegada a hora de voltar ao mar. Uma nova pesca estava começando.